Alagoas no topo da Ciência

A trajetória de uma sertaneja alagoana que lutou bravamente até chegar a um dos cargos mais altos do saber científico no País; Tribuna traz nesta reportagem especial analogia com outra heroína da região — uma certa Marta

Por Wellington Santos | Redação

Quando o celebrado escritor Euclides da Cunha (1866-1909), autor da obra-prima "Os Sertões" — onde atesta que "o sertanejo é, antes de tudo, um forte” —, ele certamente não vislumbrou que nesse contexto de sua observação, à época, estariam duas mulheres do sertão alagoano e as duas levam no sobrenome “Silva”: uma certa Marta Vieira da Silva e Kelyane Silva.

Pois bem, foi com muita bravura que uma delas, a então menina Kelyane Silva, saiu do município ironicamente chamado Batalha, encravado no rincão sertanejo alagoano, a 258 km da capital Maceió, inspirada por seus pais, João Francisco da Silva (falecido) e dona Audenôra da Silva, “Dona Nôra”, de 78 anos, para exercer atualmente o importante cargo de coordenadora-Geral de Políticas de Inovação do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação (MCTI).

Sob sua batuta, com o convite feito no final de 2023, Kelyane, de apenas 39 anos, tem a missão de liderar as principais políticas da pasta que coordenam programas sob o guarda-chuva da Lei da Inovação (que incentiva parcerias entre o setor acadêmico e o setor produtivo), a Lei do Bem (que cria benefícios fiscais para empresas investirem em inovação tecnológica e pesquisa) e acompanhar os mais de 180 núcleos de inovação tecnológica (NITs) de todo o país.

“Sempre quis o caminho acadêmico e resolvi trilhar este percurso. Terminar a graduação, depois mestrado e depois o doutorado”, diz Kelyane.

"Esticando" a célebre frase de Euclides da Cunha para o reconhecimento da força da mulher, não seria nada demais comparar, exaltando o universo feminino — inspirado no consagrado escritor —, que as mulheres são, antes de tudo, fortalezas...

Ou ainda numa analogia também com o herói Dom Quixote de La Mancha, obra-prima escrita pelo espanhol Miguel de Cervantes, Marta e Kelyane tiveram lutas renhidas contra todos os possíveis moinhos e ventos contrários para vencer na vida.

E para puxar a brasa para o rincão alagoano, o que dizer então de Marta, que se tornou a melhor jogadora de futebol do Planeta não só uma vez, mas seis...

Rainha Marta, alagoana sertaneja como Kelyane que conquistou o mundo (Foto: CBF)

Batalha e Dois Riachos, os berços das fortalezas

O município de Batalha fica somente a pouco mais de 31 km ou 50 minutos de uma certa cidade chamada Dois Riachos, sim, de uma “tal” rainha Marta, senhora do mundo, alagoana, sertaneja.

O campo de Marta foi o de futebol, e o de Kelyane, o científico, onde essa alagoana bate um bolão. Se a menina Marta driblou os péssimos gramados e, principalmente, os preconceitos para vencer, a menina Kelyane driblou as dificuldades inerentes a quem mora muito longe do centro de desenvolvimento urbano para conseguir um troféu: o da Educação.

Foi para não ficar longe do centro onde as coisas acontecem — no caso a capital Maceió — , que os pais de Kelyane moveram céus e montanhas até conseguirem educar os quatro filhos na capital Maceió.

Ainda na comparação que insiste em permear este texto, de mulheres sertanejas alagoanas, vencedoras, — e inspiradoras —, no campo de futebol e no campo científico —, Marta teve bons técnicos a lhe incentivar. Kelyane, também. Um deles com certeza foi Josealdo Tonholo, seu então chefe e incentivador na Fundação Universitária de Desenvolvimento de Extensão e Pesquisa (Fundepes), quando a então menina era uma estagiária do curso de Ciências Contábeis. Foi no seu início por lá que a jovem estudante deu seu salto na vida acadêmica e, posteriormente, profissional até galgar atualmente o topo na gestão do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação.

'Kelyane é a prova de que Educação transforma', afirmou o reitor da Ufal, Josealdo Tonholo.

Reitor Josealdo Tonholo e a ex-pupila Kelyane Silva, durante o Congresso do ProFnit, realizado em Maceió (Foto: Edilson Omena)

O hoje reitor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Josealdo Tonholo, foi o principal anfitrião de um dos maiores eventos do país que recebeu, semana passada, em Maceió, mais de 300 pessoas entre pesquisadores internacionais, nacionais, professores, mestrandos, doutorandos e estudantes na área da inovação. O megaevento foi voltado à propriedade intelectual e transferência de tecnologia, que foi o ProspeCT&I, o VIII Congresso Internacional do Profnit.

A Rede Profnit é um Programa de Pós-Graduação em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para a Inovação dedicado ao aprimoramento da formação profissional para atuar nas competências dos Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) e nos Ambientes Promotores de Inovação em diversos setores: acadêmico, empresarial, governamental e organizações sociais.

E quis o destino que esses dois personagens — Kelyane e Tonholo — se cruzassem mais uma vez, agora no evento realizado em Maceió. A Tribuna aproveitou uma “brechinha” do concorrido megaevento para conversar com Kelyane.

“Uma pessoa humilde, que enfrentou dificuldades e cursou escolas públicas de qualidade e que, depois, chegou a uma das maiores universidades do Brasil, a UFRJ {Universidade Federal do Rio de Janeiro}”, ressalta o reitor.

Reitor Josealdo Tonholo e Kelyane Silva (Foto: Edilson Omena)

“Muito orgulho ver Kelyane, egressa da Ufal, e depois chegar a um cargo de destaque no Ministério. Ela é uma prova viva de um instrumento de transformação de sua comunidade. Uma certeza: a Educação transforma”, arremata Tonholo, ao exaltar a ex-pupila da Fundepes.

“Só me tornei quem eu sou na área de inovação e tecnologia graças à Ufal e à inspiração de professores como o atual reitor Josealdo Tonholo, com quem tive o privilégio de trabalhar ao lado acompanhando sua atuação seja na incubadora de empresas da Ufal, seja nos projetos da Fundepes onde trabalhei de estagiária à supervisora e daí aflorou o desejo antigo de ser uma cientista”, confirma Kelyane.

Kelyana (no meio) com irmã Alexsandra e a mãe, Dona Nôra: as heroínas e anjos (Foto: Arquivo pessoal)

A trajetória da menina

Kelyane então cresceu e estudou em Maceió e foi a primeira integrante da família a ingressar numa universidade pública, a Ufal, no Curso de Ciências Contábeis, onde deu início a pesquisas na área de inovação e propriedade intelectual que a lançaram numa jornada com passagens por Lisboa, Portugal (mestrado entre 2011 e 2014), Espanha -Madri (pesquisa para doutorado por um ano 2017-2018), Rio de Janeiro (onde dirigiu a Agência de Inovação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e se tornou professora concursada) e, agora, Brasília, onde assumiu um dos cargos mais importantes do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

“Pois é, o diferencial na minha vida foi o estudo”, resume a hoje comandante coordenadora-Geral de Políticas de Inovação do Ministério.

“O Tonholo me incentivou muito na formação de ser uma cientista, porque me mandou fazer cursos de formação na área de inovação e depois para ir a Portugal. E quando eu ficava em dúvidas de sair daqui de Alagoas, ele dizia: “Você vai!”. completa Kelyane.

No reencontro com a pupila, em Maceió, sob testemunha da Tribuna no Congresso do ProspeCT&I, o VIII Congresso Internacional do Profnit, a agora doutora e Tonholo se abraçaram fraternalmente e ele disse: “Viu que eu estava certo!” e completou, ao brincar com a representante do Ministério: “Olha lá o que vai falar sobre mim nesta reportagem, hein!”, completou Tonholo.

“Tive a chance de ter ao lado de outros nomes como o professor e ex-secretário de Ciência e Tecnologia Eduardo Setton (de quem foi chefe de gabinete e diretora na Fapeal), a professora Aline Ramos (atual coordenadora administrativa do LCCV, na Ufal), a professora Silvia Uchôa (coordenadora do Núcleo de Inovação Tecnológica da Ufal), entre outros”, cita Kelyane.

"Todas essas pessoas são anjos que atravessaram na minha trajetória, desde meu pai, minha irmã, na pesquisa veio o Tonholo e os outros, como o Setton, a Aline, a Silvia e os professores da UFRJ, Denise Freire, Eliane Ribeiro e Vicente Ferreira”, completa.

Kelyane durante entrevista a Wellington Santos, jornalista da Tribuna (Foto: Edilson Omena)

O ‘gancho’ de contábeis para a ciência

Kelyane então foi estagiar no setor de contabilidade na Fundepes e se encantou com uma área específica no setor financeiro, o de “Contas a Pagar”. Pronto, foi o “pulo do gato”. E ela, curiosa, viu o setor de projetos, “E depois fui chamada para o setor de projetos e foi nele que descobri que essas 'Contas a Pagar' me levaram aos projetos de inovação e aí me encantei. Eu perguntava para onde iam esses projetos e fui levada à área de Tecnologia e Inovação, incubadoras, e o da economia da inovação”, lembra.

Abraçada à irmã mais velha, Alexsandra, que foi segunda mãe na sua vida (Foto: Arquivo pessoal)


Os anjos de casa: pais e a irmã inspiradora

No meio de alguns “anjos”, como gosta de falar das pessoas que lhe deram a mão, Kelyane, que atualmente mora no Rio de janeiro e despacha em Brasília, diz como foi a trajetória. “Nasci em Batalha, mas não morei lá. Fui para Maceió aos três anos com meus pais. Meu pai era operador de bombas da Companhia de Saneamento de Alagoas (Casal) e minha mãe dona de casa”, relata.

Caçula da casa, Kelyane tem três irmãos. “Meu pai sempre foi um entusiasta de que os filhos pudessem estudar, porque ele não teve condições de fazer isso”, conta. “Meus irmãos não fizeram curso superior, terminaram o ensino médio. Mas minha irmã, a mais velha e dez anos a mais que eu, foi minha inspiradora”, destaca.

“Ela terminou o ensino médio, fez contabilidade e eu me inspirei em fazer uma universidade e passei justamente em Ciências Contábeis na Ufal e passei de primeira, como se diz, e olha: foi um orgulho para a família e meu pai, principalmente”, completa.

Alexsandra Silva, a irmã, depois foi cursar Química na antiga Escola Técnica Federal de Alagoas (Etfal). “Minha irmã ficou muito próxima de mim e foi fonte de inspiração e uma segunda mãe, porque ela, inclusive, pagou meu cursinho, mesmo porque meus pais ficaram numa transição entre Maceió e o Sertão e a Alexsandra cuidou de mim”, diz.

Kelyane tem sob sua batuta a Coordenadoria-Geral de Políticas de Inovação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) (Imagem: Reprodução / Instagram)

O sonho de uma certa “quimiquista”

E aí veio à tona, brotou, o sonho de criança de Kelyana desde que a irmã mais velha já estava no curso de Química na Etfal. “Eu queria ser cientista e isso gerou um apelido que misturava química com cientista. O pessoal amigo da minha irmã até brincava comigo, porque quando criança eu sonhava em ser uma cientista e de vez em quando visitava a Etfal e via aqueles laboratórios todos lá e isso terminou se realizando anos depois e me tornei mesmo a tal “quimiquista, a cientista”.

E assim se fez o sonho da menina sertaneja alagoana, com suas lutas, seus anjos e o destino — sonho concretizado.